Investigação da
Marinha é sigilosa, mas não descarta elo com navios que burlam sanções
internacionais. Levantamento obtido pelo G1 encontrou 14 deles saindo de Puerto
José desde maio. Mercado ilegal de petróleo movimenta mais de US$ 100 bilhões
ao ano.
Um levantamento obtido pelo G1 aponta
que um navio petroleiro da Libéria operado por uma empresa grega saiu da
Venezuela em agosto, desligou seu sistema de rastreamento e passou oculto dos
radares na costa brasileira. Operando como um “navio-fantasma”, ele navegou por
águas internacionais perto da costa brasileira no mesmo período em que o óleo
que atinge o Nordeste teria sido derramado no mar.
O rastreamento que flagrou o
liberiano e outros “fantasmas”, também chamados de “dark ships”, foi feito por
uma empresa de inteligência de dados internacional a pedido do G1.
Não há informações sobre se esta embarcação está na mira do governo brasileiro.
A Marinha do Brasil não dá detalhes sobre sua investigação.
Mas considera a possibilidade
do envolvimento de
um navio irregular entre as principais hipóteses para a
origem do óleo que polui o Nordeste. A suspeita é que possa ter ocorrido algum
acidente na transferência da carga em alto mar.
Conforme testes realizados pela
Petrobras, o material
encontrado nas praias brasileiras é uma mistura de óleos
venezuelanos. A Marinha
concentra suas investigações em uma área a cerca de 700 km
da costa.
Na quarta-feira (30), o vice-presidente
Hamilton Mourão afirmou à imprensa que o governo "está perto" de
identificar os responsáveis pelas manchas de óleo. A declaração foi depois de
uma reunião com o comandante da Marinha, almirante Ilques Barbosa. Mourão
sinalizou que eventuais resultados dessa investigação serão anunciados pelo
presidente Jair Bolsonaro.
Desde maio, ao menos 14
petroleiros deixaram Puerto José, na Venezuela, e desligaram o seu sistema de
monitoramento por no mínimo duas semanas, de acordo com análise da empresa de
inteligência de dados Kpler, que "promove soluções de transparência no
mercado de commodities".
A embarcação liberiana
citada no levantamento obtido pelo G1 ficou
um mês fora dos radares desde que começou a navegar em 8 de agosto. O período
coincide com as datas-alvo das investigações conduzidas pela Marinha e Polícia
Federal. As manchas começaram a aparecer no fim daquele mês, na Paraíba.
A navegação fora dos radares é uma prática ilegal, mas não é incomum e mostra como agem os operadores do mercado pirata. Em nossa vizinhança, muitas vezes a estratégia é adotada por empresas interessadas em driblar sanções comerciais impostas à Venezuela.
O navio liberiano cujas datas
de navegação coincidem com a investigação da Marinha carregou o equivalente a
pouco mais de 1 milhão de barris de petróleo, o que daria quase 159 milhões de
litros, um volume que lotaria 3,2 mil caminhões-tanque.
Depois de pegar a carga
e retomar sua rota, esse navio-fantasma liberiano ficou oculto dos sistemas por
mais de um mês. Reapareceu perto da Malásia. Os analistas da Kpler avaliam que
o caminho que ele passou, muito provavelmente, foi pelas águas internacionais
ao longo da costa brasileira, indo pelo Cabo da Boa Esperança até a Ásia. A
alternativa a essa rota seria o canal do Panamá, mas a tarifação e a
fiscalização ali são bem mais rígidas.
A
Marinha diz que notificou 30 navios de 10 nacionalidades que teriam passado
pela costa brasileira entre 25 de agosto e 3 de setembro por suspeita
de envolvimento no derramamento. Procurados pelo G1, os responsáveis
pela investigação não informaram se o navio-tanque com bandeira da Libéria está
entre os notificados. A empresa grega responsável pelo navio não retornou os
pedidos de esclarecimentos feitos pela equipe de reportagem.
Comércio bilionário
Considerando
o mercado legal, a carga transportada pelo navio liberiano valeria algo perto
de US$ 61 milhões. No mercado ilegal, o valor é um pouco mais baixo, mas os
descontos e os riscos fazem parte da ilegalidade neste comércio que movimenta
cerca de US$ 130 bilhões por ano (algo como R$ 530 bilhões).
Esse valor é superior à
soma de tudo o que é produzido em um ano por algumas economias do mundo como
Ucrânia, Angola e Marrocos, por exemplo. Entre os países em que o roubo e
contrabando de petróleo são mais comuns estão Nigéria, México, Equador, Irã e,
atualmente, também a Venezuela.
Para poder entrar na
ilegalidade, os administradores dos navios desligam o sistema de monitoramento
das embarcações em alto mar, o chamado "Automatic Identification
System" (AIS). O AIS serve para localizar e identificar os navios a longa
distância. A Convenção Internacional para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar
(Solas), um tratado das Nações Unidas, exige que os navios usem sempre os
sinais AIS para navegação.
Analistas do setor apontam que
as embarcações fantasmas montam verdadeiras "lojas no oceano" para
venda de petróleo e derivados. Um dos riscos é que ocorram problemas durante a
transferência do produto, levando a um derramamento no mar.
Na maioria das vezes,
eles comercializam os derivados do petróleo, e nem sempre o óleo cru. Boa parte
do dinheiro financia outras atividades fora da lei, como o tráfico de drogas e
o terrorismo. E as medidas de fiscalização contra ele não são efetivas (leia
mais abaixo).
Um mercado ilegal e global
O roubo
e o contrabando de petróleo e de combustíveis ocorrem em grande escala, e em
âmbito global. Praticamente todos os países produtores e compradores enfrentam
algum nível de ilegalidade nesse mercado, que envolve principalmente os
produtos do óleo refinado, como gasolina, diesel, querosene, lubrificantes e
gás.
Isso ocorre até mesmo na
Europa e nos Estados Unidos, além do Oriente Médio, da África e dos países
latino-americanos. No Brasil, o mercado é mais controlado, dominado pela
Petrobras. No país, a ilegalidade mais comum não tem relação com os "dark
ships", mas com furtos na rede de mais de 14 mil km de oleodutos e
gasodutos. Em 2018, a estatal registrou 261 ocorrências de intervenções
clandestinas nesses dutos.
A forma mais comum de
comercializar o óleo ilegalmente é por meio da "arbitragem", isto é,
obter o produto mais barato em um lugar e vendê-lo por preço mais alto em
outro. Nesse mercado, a técnica também é muito usada para lavagem de dinheiro.
De acordo com o
pesquisador e analista David Soud, especialista na investigação do comércio
ilícito de petróleo no I.R. Consilium (EUA), a diferença de preços entre um
país e outro se dá tanto pelo modelo de produção quanto por causa de subsídios
ao setor petroleiro em algumas localidades.
"Você pode comprar
combustível subsidiado no Equador, por exemplo, e depois vendê-lo fora, na
Colômbia. Não é à toa que a possibilidade de mexer nos subsídios no Equador
provocou protestos recentemente", recorda Soud.
O óleo ilegal costuma
ser comercializado com um desconto em relação ao preço de mercado.
De acordo com Soud, é
difícil estimar quanto valeria uma carga ilegal de petróleo no mercado
clandestino, mas os preços se baseiam nos do mercado regular. O petróleo cru do
tipo Brent está atualmente na casa dos US$ 61 por barril.
O mercado ilegal do
petróleo tem entre suas estratégias ataques a dutos de distribuição em terra e
também a ação de piratas em alto mar, em pequena e em grandes escalas.
"Há navios-tanque que literalmente montam uma loja no oceano. E aí ocorrem muitas transferências de carga de um navio para o outro." – David Soud, analista do I.R. Consilium (EUA)
Desviar a carga e 'sumir' do mapa
É nesse ponto que muitas embarcações
que carregam petróleo desligam seus sistemas de monitoramento AIS e somem do
mapa. Esses navios saem do porto com uma carga e, no meio do caminho, carregam
mais óleo ou combustíveis, e talvez passem o produto para outras embarcações.
Só depois o produto contrabandeado é levado a um destino.
Embora o petróleo seja normalmente medido
em quantidade de "barris" (cada barril tem 159 litros), o mais usual
é que o produto e seus combustíveis sejam transportados em grandes tanques.
Seriam necessários milhões de barris de metal para poder transportar a enorme
quantidade de óleo que apareceu nas praias do Brasil, algo bastante incomum.
O analista do mercado de petróleo cru
Emmanuel Belostrino, da Kpler, explicou ao G1 que, quando um
navio desliga o AIS, ele para de emitir sua posição e também outras informações
de movimento. "Eles ficam, essencialmente, escondidos e fora do
mapa", afirma.
"O
sinal AIS é uma medida de segurança, pois ajuda a evitar colisões e outros
acidentes marítimos. Os capitães de navios não vão, normalmente, parar de
enviar esses sinais, a menos que estejam ativamente tentando esconder suas
posições, como é o caso de algumas embarcações levando óleo cru iraniano ou
venezuelano" – Emmanuel Belostrino, da empresa de inteligência de dados
Kpler.
Ele menciona especialmente o Irã e a
Venezuela porque esses países têm regimes políticos que atualmente enfrentam
sanções internacionais, especialmente dos Estados Unidos e da Europa. O mercado
clandestino do petróleo acaba se tornando uma alternativa para desovar uma
parcela importante da produção que, por causa das sanções, não encontraria
saída legal.
Em relatório para o centro de
pesquisas "Atlantic Council", os especialistas Ian Ralby e David
Sound dizem que o comércio ilegal de óleo custa bilhões de dólares ao ano para
os governos, que deixam de arrecadar impostos, e também para empresas do setor
de energia, que enfrentam a concorrência desleal.
O contrabando de óleo e seus produtos
fomenta outras atividades ilegais, como:
·
Pirataria nos oceanos;
·
Produção de cocaína, pois a gasolina é usada como solvente;
·
Financiamento para o crime organizado e o terrorismo;
·
Cobertura para outras operações de tráfico;
·
Apoio para operações de pesca ilegal.
Segundo Soud, a única saída para
minimizar o problema seria a criação de parcerias internacionais e,
principalmente, regionais, na fiscalização e no combate ao comércio ilegal.
"A situação do vazamento de óleo
no Brasil mostra a enorme necessidade de cooperações regionais. É importante
termos respostas regionais, e não só nacionais, porque a repercussão desse
problema sempre termina atravessando as fronteiras", analisa.
Os 14 navios 'fantasmas'
As sanções dos Estados Unidos contra
o petróleo venezuelano fizeram com que, nos últimos meses, mais navios
começassem a sair da Venezuela com grande quantidade de óleo cru, conforme
observou Emmanuel Belestrino. Segundo ele, só no mês de agosto, um total de 17
navios petroleiros carregaram petróleo cru em Puerto José.
"Alguns carregam quantidade
equivalente a quase 2 milhões de barris de petróleo e desaparecem do radar
quando desligam o sistema AIS", afirma o analista de mercado.
Nesse contexto, o G1 pediu
à Kpler que fornecesse uma lista dos navios mais recentes que usaram esse
recurso para "sumir do mapa". Desde o início de maio, foram 14
embarcações, conforme a tabela abaixo.
Alguns desses barcos desaparecem do
radar por pelo menos duas semanas e reaparecem depois no sistema em lugares
como Estreito de Malaca (entre a península da Malásia e a ilha de Sumatra) ou o
Cabo da Boa Esperança (África do Sul).
Navios petroleiros
que desligaram o AIS por ao menos 2 semanas
BANDEIRA DO NAVIO
|
DATA DO CARREGAMENTO
|
CARGA (Equivalente em Barris)
|
Grécia
|
27/05/2019
|
500.000
|
Hong Kong
|
05/06/2019
|
1.900.000
|
Malta
|
06/06/2019
|
1.900.000
|
Grécia
|
08/07/2019
|
1.900.000
|
Grécia
|
12/07/2019
|
1.400.000
|
Libéria
|
26/07/2019
|
1.900.000
|
Panamá
|
29/07/2019
|
1.916.000
|
Libéria
|
08/08/2019
|
1.023.000
|
Grécia
|
01/09/2019
|
1.900.000
|
Malta
|
12/09/2019
|
563.000
|
Malta
|
14/09/2019
|
667.000
|
Malta
|
24/09/2019
|
1.000.00
|
Libéria
|
11/10/2019
|
1.000.000
|
Malta
|
12/10/2019
|
958.000
|
Saindo de Puerto José
|
1 barril = 159 litros
|
Dessa lista, o navio mais
próximo ao desastre ambiental no Brasil é aquele com bandeira da Libéria que
carregou petróleo bruto na Venezuela do tipo "Merey 16", um dos mais
comercializados, e desligou seu AIS por mais de um mês.
O G1 questionou
a empresa responsável sobre o porquê de a embarcação ter navegado com o AIS
desligado, mas ainda aguarda uma justificativa. De acordo com Soud, via de
regra “a indústria de navios é hipercompetitiva e extremamente sigilosa, por
isso pode ser muito difícil obter respostas”.
Outros 16 barcos
carregaram petróleo no mesmo porto durante o mês de agosto – e mantiveram o AIS
ligado durante a rota, como é esperado. A Marinha não detalhou os nomes dos
suspeitos e não é possível afirmar se eles integram a lista.
Especialistas confirmam
que, de fato, o óleo venezuelano é mais pesado, ácido e denso, características
que batem com o material que está nas praias do Nordeste. Também os óleos do
México e do Canadá têm aspecto parecido.
Por causa das
características desse óleo venezuelano, ele teria que ser levado para países
que têm estrutura avançada de refinamento, como Rússia, Índia ou Cuba, por
exemplo. Nem todos os países conseguem refinar um óleo extremamente denso.
Também por isso é mais comum o contrabando de combustíveis. O querosene, por
exemplo, pode ser usado na adulteração de gasolina.
Esse óleo venezuelano é
diferente daquele encontrado na Nigéria, por exemplo, que é mais leve,
"doce" (baixo teor de enxofre) e por isso mais fácil de refinar.
"Na Nigéria roubam muito óleo cru, porque o óleo de lá pode ser refinado
até no quintal. Esse cálculo criminoso faz sentido", conta Soud,
acrescentando que a gasolina que resulta desse processo entra facilmente no
Togo, por exemplo.
"Já o
óleo do México ou da Venezuela é bem diferente, muito pesado. Você precisa de
um processo mais complexo, com equipamentos e muito conhecimento. Tanto que no
México roubam mais o combustível já refinado." – David Soud, pesquisador
do I.R. Consilium
Segundo Emmanuel Belostrino, os
navios-fantasma que carregam óleo cru da Venezuela e tentam ofuscar suas
operações durante a viagem desligando o sistema AIS desaparecem do mapa por
tempo "considerável".
O fato de o óleo não ser
habitualmente transportado em barris de metal, e sim em tanques, torna ainda
mais "misterioso" o fato de terem sido encontrados barris da marca
Shell contendo o mesmo óleo em algumas das praias. A Shell diz que os barris
eram, originalmente, de lubrificantes e que foram reutilizados por terceiros,
não por ela.
"Ataques de piratas a
navios-tanque de óleo cru seriam uma possibilidade, desde que alguns bandidos
tenham retirado uma parte do óleo dos tanques e passado para alguns barris reutilizados.
Mas essa teoria seria muito difícil de provar", deduz o analista
Belostrino. "Esse é o único caso que posso pensar envolvendo barris de
verdade."
Desafios da fiscalização
Qualquer instituição e até outros
navios podem monitorar o sistema AIS. Existem várias agências que fornecem esse
serviço, usado inclusive pelas guardas costeiras, pelas bases de controle dos
portos e pela Marinha.
Porém, quando os navios-fantasma
desligam o sistema AIS, é impossível saber exatamente o que aconteceu no período
em que não estavam sendo monitorados. Esse é o maior desafio para a
fiscalização em águas internacionais.
"Esses 'dark ships' estão num
campo muito difícil de detecção", lembra o professor Rui Carlos Botter, do
departamento de Engenharia Naval e Oceânica da Universidade de São Paulo (USP).
"Você nunca vai conseguir saber de onde ele veio e o que fez.
Precisaríamos de sistemas muito mais complexos e caros, para isso."
Embora existam convenções
internacionais e orientações claras, recorda Botter, são as autoridades
nacionais as principais responsáveis pela fiscalização – no caso do Brasil, a
Capitania dos Portos. "E, de qualquer forma, você precisaria de provas
para acusá-los de alguma coisa. Os tribunais internacionais raramente entram
nesse tipo de coisa", diz o engenheiro naval.
David Soud acrescenta que, “exceto em
situações muito especiais, ninguém tem autoridade para inspecionar uma carga em
águas internacionais”. Cada embarcação precisa seguir as leis do país que lhe
atribui uma bandeira. E também a legislação dos países por onde passa em suas
viagens.
Além disso, é prática usual desses
navios falsificar os documentos da carga. Soud relata o exemplo da
transferência de uma carga roubada de diesel da Líbia entre navios perto de
Malta. O material seria descarregado na Sicília, para depois ser distribuído na
Itália, na França e na Espanha.
Antes disso, a carga mudou de mãos
várias vezes, por meio de empresas de fachada. "Eles usam certificados
falsos sobre a origem do produto", conta o especialista. "E também
notas de embarque falsas para a carga."
Também é possível que os
navios-fantasma simplesmente entreguem óleo ou combustível ilegal nos portos,
refinarias ou terminais onde haja alguém disposto a falsificar a documentação.
Ou que façam a mistura com outros combustíveis, num processo de adulteração.
Assim, conseguem 'lavar' o produto roubado ou contrabandeado para que,
gradualmente, entre nos canais de oferta legal.
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